Estima-se que 55 milhões de toneladas de alimentos vão parar no lixo todos os anos.
O Brasil desperdiça aproximadamente 55 milhões de toneladas ao longo de toda cadeia de produção de alimentos, anualmente. Ao mesmo tempo, milhares de pessoas vivem em situação de insegurança alimentar grave no país.
Apesar de o desperdício e a fome serem dois desafios independentes, segundo relatório realizado pela Integration Consulting em parceria com o Pacto Contra a Fome, a redução do primeiro problema traria sustentabilidade ambiental, redução de custos e maior disponibilidade de alimentos, o que beneficiaria a segurança alimentar de forma geral.
Assim, resolver o desperdício no Brasil é, também, uma das nossas missões, e frequentemente esbarramos na lacuna que existe na coleta de dados sobre quanto, onde e como estamos jogando comida fora. Isso porque não existem estudos nacionais integrados e profundos que façam o mapeamento completo do desperdício na cadeia de alimentos.
É preciso compreender a realidade
Para entender melhor o cenário e os possíveis caminhos para diminuição do problema, nós conversamos com um de nossos co-fundadores, Gustavo Porpino, sobre a importância da qualidade e da quantidade de dados acerca do desperdício de alimentos.
Pesquisador na Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), ele explica que o tema é complexo e envolve muitas etapas, desde a produção até o consumidor final. “O desperdício em nossas casas acontece, muitas vezes, por conta de problemas anteriores na cadeia que não temos como controlar. Medir todos esses fatores para resolvê-los em um país com as dimensões do Brasil é difícil.”
De fato, são mais de 65 milhões de hectares de lavouras e 17,5 milhões de toneladas de produtos só do setor hortigranjeiros comercializados no Brasil, segundo a Embrapa e a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). As 62 Centrais de Abastecimento (Ceasa) espalhadas pelos estados recebem produtos que percorrem, muitas vezes, milhares de quilômetros, em condições de transporte frequentemente inadequadas e que prejudicam sua durabilidade. Assim, muito se perde nesse trajeto, mas definir a medida exata das perdas é um desafio enorme.
Países que têm estratégias mais robustas para essa medição reportam seus resultados para dois organismos internacionais, que reúnem e analisam as informações e propõem soluções: a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), e o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). Este último lançou, recentemente, o Índice Global do Desperdício de Alimentos 2024, no qual o Pacto Contra a Fome e o Todos à Mesa foram citados como exemplos de organizações que estão atuando ativamente na resolução do problema no Brasil.
Este mesmo relatório aponta que entre os países do G20, apenas Austrália, Japão, Reino Unido, Estados Unidos e União Europeia têm dados atuais robustos sobre o desperdício de alimentos, patamar difícil de ser alcançado em um país com a complexidade produtiva do Brasil. “Faltam estudos que acompanhem, pelo menos, os principais alimentos consumidos aqui, desde o plantio, a colheita e o pós colheita, até os CEASAs e o varejo, para que possamos identificar quais são os pontos mais críticos de desperdício na cadeia e pensar estratégias voltadas para eles”, aponta Gustavo.
Potencial de mais, alcance de menos
O Brasil contribuiu para o Índice com dados coletados em cinco regiões da cidade do Rio de Janeiro ao longo de 2023. Os resultados obtidos apontam para um descarte de 94 kg de comida por pessoa no ano. Esses números foram obtidos por meio da gravimetria, uma metodologia que está sendo desenvolvida no país. “Esse método analisa resíduos gerados por famílias. Nele, o lixo domiciliar orgânico é coletado e triado para separar o que é alimento e o que é comestível do que não é, e isso é pesado.”
Anos atrás, a FAO considerava desperdício apenas quando as partes comestíveis eram jogadas fora. Agora, cascas de frutas e ossos, por exemplo, também são medidos, porque existe uma preocupação com a quantidade de resíduos orgânicos gerados e do seu potencial de poluição, por meio da emissão de gás metano — um dos maiores responsáveis pelo efeito estufa. Para se ter uma ideia, estima-se que os lixões do Brasil gerem cerca de 6 milhões de toneladas do poluente por ano, conforme reportagem da Agência Brasil.
A gravimetria é um método eficiente e está sendo aplicado também nas cidades de São Paulo, Osasco e Brasília pelo PNUMA, mas é limitado às etapas de consumo e varejo. Nas etapas da produção, responsáveis por cerca de 30% do desperdício, esse método não é aplicável, portanto, a medição no Brasil permanece defasada.
O cofundador do Pacto Contra a Fome defende que a elaboração de pesquisas com abordagens multimétodo melhorariam esse panorama. “Pode-se usar a gravimetria para obter dados e reportá-los para os organismos internacionais responsáveis, ao mesmo tempo em que se realiza o acompanhamento de ponta a ponta no campo e análises de fatores comportamentais que levam o consumidor a desperdiçar.”
Os caminhos a seguir já existem
Países como Holanda, Canadá, México, Indonésia, Suíça e África do Sul encontraram nas parcerias público-privadas uma alternativa para mensurar os alimentos desperdiçados e, assim, atuar na resolução do problema. Além desses exemplos, Gustavo conta outras iniciativas com as quais entrou em contato em fóruns ligados aos Objetivos de Desenvolvimento das Nações Unidas (ODS).
“A Austrália tem uma das coalizões mais robustas nesse sentido, chamada End Food Waste. É uma parceria entre governo, Academia, varejo e indústria com uma governança própria, parecida com a do Pacto Contra a Fome.”
O grupo capta recursos para pesquisas e faz workshops anuais compartilhando boas práticas de mensuração, e também foi responsável por criar a nova estratégia nacional contra o desperdício, que já está em sua fase final de aplicação no país.
A União Europeia, por sua vez, tem investido e compartilhado tecnologias uniformes de mensuração entre todos os países membros, com critérios de como mensurar os resultados estabelecidos por meio de normativas. Os Estados Unidos estão construindo sua estratégia nacional para redução de desperdício de alimentos por meio de campanhas de comunicação e desafios anuais de inovação aberta. Neles, startups, investidores, agências públicas e privadas focadas em empreendedorismo são convidadas pelo governo a propor soluções inovadoras para reduzir o desperdício.
O que está entre o Brasil e o ODS 12.3
O Objetivo de Desenvolvimento 12.3 da ONU trata especificamente da redução do desperdício de alimentos pela metade em todo o mundo por meio da diminuição das perdas de alimentos ao longo de toda a cadeia produtiva. Seu principal indicador é o Índice Global de Desperdício, mas no Brasil ainda precisamos estabelecer nosso próprio marco regulatório para essa redução.
Para Gustavo, ainda estamos a um passo atrás do que é preciso para cumprir a meta. “Antes de qualquer coisa, é preciso atualizar a estratégia. Para isso, tem que haver uma priorização do tema na agenda dos governos em todos os níveis [federal, estadual, municipal]. Porque, apesar de extremamente relevante do ponto de vista ambiental, social e econômico, o desperdício compete com vários outros assuntos que também são emergenciais: segurança, saúde, educação, emprego. Então é necessária uma organização maior da governança para que isso ganhe mais atenção.”
A disponibilização de recursos e mão-de-obra para a mensuração do desperdício de alimentos em um país com as dimensões do Brasil também é desafiadora. Além da questão financeira, o pesquisador pontua a necessidade de formar equipes multidisciplinares, com profissionais de economia, análise de dados, estatística e comportamento do consumidor. “Temos tecnologia e metodologias robustas e diferenciadas para cada parte da cadeia, mas aplicá-las tem um custo.”
Só conseguiremos juntos
As parcerias público-privadas têm demonstrado bons resultados nos países do G20 em que foram aplicadas, e no Brasil, sua capacidade de mobilização pode beneficiar os dois lados.
Gustavo explica que a atuação do setor privado é essencial, principalmente porque o varejo é um elo chave da cadeia de alimentos, interagindo com o produtor rural, a indústria e o consumidor.
Já existem dados desse setor que poderiam ser valiosos para a mensuração do desperdício no Brasil, mas a forma como são divulgados ainda não é a ideal. “Informações mais específicas sobre os alimentos que estragam, são descartados ou passam da data de validade ajudariam muito a reportar de forma mais eficiente para os organismos internacionais de monitoramento e atingir a meta do ODS 12.”
O pesquisador também ressalta que a prática poderia fazer parte de uma ação de responsabilidade social corporativa do varejo. “Reportando os dados para o Índice, as marcas demonstram que estão se esforçando para melhorar a gestão de estoque e capacitar o pessoal dentro da loja para reduzir o desperdício”, diz.
Do lado do governo, o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Assistência Social, Família e Combate à Fome planeja atualizar a estratégia brasileira de redução de perdas e desperdício junto à Embrapa e à Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan). “O mais importante nessa agenda é buscar meios de implementar as pesquisas e, assim, as ações que vão melhorar os números que temos hoje. Para isso, vemos um esforço de envolver não apenas as instituições públicas, mas o varejo e o terceiro setor nas reuniões de trabalho”, pontua Gustavo.
A sociedade civil, por sua vez, pode pressionar os governos a dar atenção à sustentabilidade dos meios de produção e consumo de alimentos e a cumprir seu papel de unir e organizar todos esses elos — ação fundamental para que tenhamos uma estratégia que consiga identificar as partes mais críticas da cadeia. Na visão do pesquisador, estamos no caminho certo.
“Durante a pandemia, houve um crescimento muito grande de iniciativas do terceiro setor para combater a fome e o desperdício. O próprio Pacto Contra a Fome foi uma resposta muito bem construída nesse momento. Então acho que a sociedade civil tem feito sua parte, o que falta é juntarmos todas essas iniciativas ao governo e às empresas para formar uma coalizão mais robusta”, conclui.