Mulheres representam 62% das pessoas à frente de ações sociais, inclusive contra a fome

Apesar de fazerem mais pela redução do problema, elas ainda são mais suscetíveis à insegurança alimentar

Apesar de fazerem mais pela redução do problema, elas ainda são mais suscetíveis à insegurança alimentar.

Segundo relatório da Rede Penssan de 2022, 33,1 milhões de pessoas no Brasil estavam em situação de fome naquele ano. Dentre elas, as famílias chefiadas por mulheres eram as mais atingidas pela insegurança alimentar grave, com 19,3%.

Ao mesmo tempo, pesquisas mostram que elas são maioria no terceiro setor — pilar fundamental para redução de desigualdades sociais de um país, como a fome. Uma matéria divulgada no Observatório do Terceiro Setor revela que as mulheres representam 62% das pessoas que realizam trabalho voluntário e ocupam 51% dos cargos de liderança na área. 

Analisando este cenário, podemos afirmar que existe uma contradição na relação entre as mulheres e a fome; enquanto elas são as que fazem mais por quem não tem o que comer, são também as mais suscetíveis ao problema.

O peso do cuidado

Não é novidade para ninguém que ainda hoje as mulheres são responsáveis pelo cuidado com o próximo na maioria dos lares do Brasil. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2022, os homens gastavam 11,7 horas por semana com afazeres domésticos, enquanto as mulheres gastavam mais de 21,3. 

Esse cuidado ao próximo se estende também ao protagonismo da mulher em ações de combate à fome no país. 61,9% das iniciativas inscritas no HUB Pacto Contra a Fome são lideradas por mulheres. 

“É fundamental olharmos para as estruturas que ainda precisamos superar, garantindo equidade no acesso à alimentação saudável, ao mesmo tempo que reconhecemos como as mulheres já têm sido protagonistas da solução”, comenta a diretora de políticas públicas e projetos do Pacto, Maria Siqueira.

Mãe Kelly de Angelis distribuindo refeições em uma das ações do CEU Estrela Guia no centro de São Paulo. Crédito da Foto: Ricardo Durande

Engenheira civil com uma sólida experiência em empresas nacionais e multinacionais, Mãe Kelly de Angelis é uma dessas mulheres: ela é cofundadora e líder do Instituto CEU Estrela Guia, organização localizada na cidade de São Paulo que realiza ações de combate à fome e à desigualdade social desde 2015.

“Trabalhar nessa área me completa, eu amo fazer o que faço e ver as pessoas sendo transformadas, se desenvolvendo”, conta.

Por meio da captação de recursos e doações, o instituto, que foi finalista do Prêmio Pacto Contra a Fome 2023, direciona cestas básicas, hortaliças e outros recursos essenciais como itens de higiene e roupas, para aqueles em situação de vulnerabilidade social. 

Além disso, diariamente, são preparadas e distribuídas refeições e lanches no centro da capital para pessoas em situação de rua. Com o objetivo de apoiar a geração de renda e a inclusão profissional do público atendido, o CEU Estrela Guia oferece cursos de culinária empreendedora e inclusão digital, com foco especial em mulheres, pessoas LGBTQIA+ e jovens.

Uma relação desigual

Apesar da grande representatividade das mulheres no terceiro setor, elas estão em uma posição sensível em relação à fome, sendo cada vez mais impactadas pelo problema: em 2022, seis em cada dez lares comandados por elas conviviam com a insegurança alimentar. Nas casas em que a pessoa de referência era uma mulher, a recorrência da fome era de 19,3%, enquanto nas que tinham homens como responsáveis, o percentual caía para 11,9%. 

Essa incoerência se dá por problemas estruturais que tardam em ser solucionados. Desigualdades históricas de remuneração, oportunidades de trabalho e de educação fazem com que elas estejam sempre alguns passos atrás na corrida por uma vida e uma alimentação digna para si e suas famílias. De acordo com o Observatório Brasileiro das Desigualdades

  • As mulheres ganham, em média, apenas 72% dos que os homens ganham, e as mulheres negras ganham, em média, apenas 42% do que os homens não-negros; 
  • Em 2022, 14% das mulheres negras estavam desempregadas, contra apenas 6,3% de homens não negros, e estima-se que 29% dos domicílios em que a mulher responsável está desempregada ou com trabalho informal estão em situação de insegurança alimentar; 
  • A fome é realidade em cerca de 26% das famílias chefiadas por mulheres com menos escolaridade, que pode ser causada pela desigualdade na divisão de tarefas domésticas, por exemplo, e impacta diretamente na inserção delas no mercado de trabalho.

A experiência da Mãe Kelly nas ruas é um reflexo dos dados. 

“A maior parte do público que atendemos são mulheres. As histórias são muito similares e partem da dificuldade financeira. Muitas delas estão sozinhas, chefes de famílias com dificuldade em arrumar emprego por conta da baixa escolaridade. Ouvimos muitas dessas histórias e temos muita vontade de mudar essa realidade. Como em um país tão grande, em que tudo que se planta dá, existe fome e desigualdade social? Buscamos através da força dessas mulheres o incentivo para continuarmos captando recursos para mudar essa realidade”.

A solução da fome passa por elas

Ativista política e social norte-americana atuante na década de 1970, Angela Davis afirma que “quando uma mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela.” 

Angela sintetiza, nessa frase, a realidade difícil de que a sociedade como a conhecemos foi construída sobre o trabalho das mulheres, especialmente das mulheres negras, que ainda são as maiores vítimas da fome no país. O mesmo relatório da Rede Penssan mostra que quatro em cada dez lares chefiados por elas apresentavam dificuldade de acesso aos alimentos em 2022, e dois em cada dez se encontravam em situação de fome. Por outro lado, a afirmação da ativista traz a reflexão de que a defesa do direito dessas mulheres e a melhoria das suas condições de vida impulsiona toda a sociedade. 
Entender essa contradição enfrentada pelas mulheres — de serem protagonistas no combate à fome e, ao mesmo tempo, mais afetadas pelo problema — é o primeiro passo para encontrar soluções eficazes e definitivas. Isso passa, necessariamente, pela conquista e garantia de uma série de direitos como criar oportunidades de emprego, promover o acesso à educação e a permanência nos estudos, e atingir equidade salarial.

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