A fome persiste em nossa sociedade e é um paradoxo – o mundo produz alimentos suficientes para erradicá-la. Mas a fome não se resume à ausência de comida no prato; é um fenômeno complexo e multifacetado.
Para elaborar estratégias eficazes para enfrentar esse problema, é preciso conhecer seus diferentes tipos, suas causas e suas consequências.
O que é a fome?
A fome pode ser definida como a condição fisiológica que ocorre quando o corpo humano não recebe os nutrientes suficientes para executar suas funções vitais.
O termo é mais usado para se referir a casos de privação de alimento em populações, uma condição complexa que pode ter várias causas, incluindo a pobreza extrema, a desigualdade social e a falta de acesso a recursos alimentares.
A falta de alimento causa mal-estar físico e psicológico e leva a graves problemas de saúde, como desnutrição, mal desenvolvimento, enfraquecimento do sistema imunológico e até morte.
Tipos de fome e suas características
Tipos de fome e suas características
- A fome epidêmica acontece de forma repentina devido a crises, como desastres naturais, guerras ou epidemias, impactando uma grande parte da população de uma região específica de forma aguda e severa e, necessitando de ações de combate urgentes.
- Já a fome endêmica se refere à fome constante e persistente em uma determinada área ou população. Essa é uma condição crônica ligada às estruturas econômicas da região, como pobreza, desigualdade e falta de programas sociais voltados para a resolução desses problemas.
Outro termo importante na questão da fome é a insegurança alimentar, que pode ser vivenciada mesmo quando uma pessoa não está passando pela sensação física da fome Ela ocorre quando as pessoas não têm certeza se terão acesso a alimentos saudáveis e nutritivos, o que pode levar a uma dieta repetitiva ou a escolhas alimentares menos saudáveis. Mesmo que consigam calorias básicas, a falta de nutrientes fundamentais pode afetar a saúde e levar à desnutrição.
Essa situação pode ocorrer em três níveis:
- Insegurança alimentar leve: há acesso limitado a alimentos nutritivos, e troca-se a qualidade pela quantidade;
- Insegurança alimentar moderada: o acesso aos alimentos é restrito, levando a uma redução na qualidade e na quantidade da alimentação;
- Insegurança alimentar grave: quando a pessoa não tem comida nem dinheiro para comprá-la, ou quando só faz uma refeição diária ou, fica um dia ou mais sem comer nada.
Causas da fome: fatores sociais, econômicos e ambientais
A fome não é causada simplesmente pela falta de alimentos. Ela é resultado de uma combinação de fatores sociais, econômicos, ambientais e políticos. Identificar essas causas é fundamental para o desenvolvimento de soluções eficazes e sustentáveis para a segurança alimentar do mundo.
A principal causa da fome é a pobreza – quando as famílias não têm recursos financeiros suficientes para comprar alimentos nutritivos, levando à insegurança alimentar e à desnutrição.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2022, 12,7 milhões de brasileiros estavam em situação de extrema pobreza, ou seja, viviam com menos de R$ 200,00 por mês. Já o percentual de brasileiros na pobreza foi de 31,6% da população, o que significa que haviam 67,8 milhões de pessoas vivendo com até R$ 637,00 por mês. Ou seja, muitas pessoas não têm acesso a uma alimentação digna em nosso país.
Aliado à pobreza, outro fator que implica no acesso aos alimentos é a desigualdade social e econômica, que afeta principalmente as mulheres e a população negra. A disparidade no acesso ao mercado de trabalho, à educação e a serviços básicos cria mais barreiras na manutenção de uma alimentação suficiente
Mais uma causa raiz atrelada à fome é a má distribuição de alimentos. Mesmo em um mundo onde a produção de alimentos é suficiente para alimentar toda a população, milhões de pessoas ainda enfrentam a fome devido à estrutura dos sistemas alimentares – ou seja, a maneira como produzimos, distribuímos e consumimos alimentos.
Além de gerar uma desigualdade de acesso, os problemas na cadeia de produção e distribuição também geram desperdício – quase um terço de todos os alimentos produzidos no mundo são perdidos ou desperdiçados, segundo o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA).
Em muitas regiões do planeta, a fome assola comunidades e até países inteiros por conta de guerras e conflitos armados, que interrompem a produção e distribuição de alimentos, causando crises humanitárias. Outras causas da fome são as crises políticas, econômicas e sanitárias, como a pandemia de Covid-19.
As mudanças climáticas, os desastres naturais e o manejo inadequado dos recursos naturais também impactam a produção e distribuição de alimentos e, por isso, contribuem para a prevalência da fome.
As consequências da fome vão além da saúde
A fome tem efeitos devastadores sobre pessoas, comunidades e nações inteiras, impactando a saúde, a economia e o desenvolvimento social. As primeiras consequências da fome se manifestam na saúde e, a longo prazo, podem causar danos irreversíveis.
A privação de comida leva à desnutrição, uma condição na qual o corpo não recebe os nutrientes essenciais necessários para funcionar corretamente. Ela resulta em uma série de problemas de saúde, incluindo o enfraquecimento do sistema imunológico, que diminui a capacidade de combater infecções. Por isso, a fome aumenta a taxa de mortalidade.
Nos adultos, a falta de uma dieta saudável e nutritiva ainda interfere no surgimento das chamadas doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs), como hipertensão, diabetes e obesidade.
Nas crianças, a desnutrição atrasa o desenvolvimento físico e cognitivo, além de comprometer o crescimento saudável e a resistência a doenças, o que contribui para o aumento da mortalidade infantil.
A desnutrição infantil ainda afeta diretamente o desempenho educacional. Com fome, as crianças têm dificuldade de concentração, não retêm informações e, frequentemente, faltam às aulas devido a problemas de saúde. Isso compromete seu aprendizado e sua capacidade de obter oportunidades futuras, perpetuando o ciclo de pobreza e insegurança alimentar.
E as consequências da fome não param por aí; as pessoas que sofrem de desnutrição muitas vezes não conseguem trabalhar de forma eficaz, resultando na perda de produtividade em todas as áreas e na redução do potencial econômico do país como um todo. O baixo desenvolvimento econômico também gera uma menor arrecadação tributária pelo Estado, o que prejudica a capacidade de investimento público em soluções eficazes contra a fome, perpetuando o ciclo da fome:
No âmbito social, a fome também deixa marcas. Ela pode desestabilizar comunidades, levando a tensões sociais e conflitos por recursos escassos, e, em situações extremas, resultar em migrações em massa e deslocamentos populacionais.
Fome no mundo: panorama global
De acordo com o relatório “O Estado da Segurança Alimentar e da Nutrição no Mundo” (SOFI), da Organização das Nações Unidas (ONU), mais de 700 milhões de pessoas passaram fome no mundo em 2023.
Entre as regiões que mais sofrem com esse problema está o continente africano; segundo o relatório, a fome na África tem aumentado constantemente desde 2015, onde mais de uma em cada cinco pessoas pode ter enfrentado fome em 2023.
Outras regiões onde a fome também aumentou foram a Ásia Ocidental e o Caribe. Na Ásia, os indicadores apresentaram estabilidade. Já na América Latina houve um progresso notável na segurança alimentar.
A ONU ainda destaca o agravamento da crise humanitária como causa do aumento da insegurança alimentar em vários lugares, como Faixa de Gaza, Haiti, Sudão, Sudão do Sul, Síria e Iémen.
Dados da fome no Brasil
Apesar de ser um dos maiores produtores de alimentos do mundo, o Brasil enfrenta uma situação crítica: cerca de 64 milhões de brasileiros conviveram com algum nível de insegurança alimentar, conforme dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) de 2023 do IBGE. Se olharmos os números da ONU, temos que, entre 2021 e 2023, 39,7 milhões de brasileiros e brasileiras enfrentaram a insegurança alimentar moderada ou severa.
O relatório ainda mostra que a insegurança alimentar grave é mais predominante nas regiões Norte e Nordeste: cerca de 58% das pessoas expostas à fome no Brasil vivem nesses territórios.
Existem também grupos com maior chance de conviver com a insegurança alimentar grave, como as famílias chefiadas por mulheres autodeclaradas negras e os lares com crianças e adolescentes.
A fome e a pandemia de Covid-19
A pandemia de Covid-19 trouxe desafios sem precedentes para saúde pública, economia e segurança alimentar em todo o mundo. O vírus não só impactou diretamente a saúde das pessoas, como também acentuou desigualdades já existentes, piorando a fome em muitas regiões.
As medidas de restrição e o confinamento revelaram vulnerabilidades nos sistemas de distribuição de alimentos e nas economias globais e locais. Em meio à crise, houve interrupção das cadeias de suprimento, aumento do desemprego e inflação dos preços dos alimentos. Assim, o cenário pandêmico dificultou ainda mais o acesso de famílias de baixa renda a uma alimentação adequada.
O progresso dos últimos anos na redução da fome e da pobreza foi gravemente afetado por essa situação, e muitas pessoas que haviam conseguido sair da pobreza extrema voltaram a enfrentar dificuldades devido à crise econômica global.
Mesmo após o fim da pandemia, os números ainda seguem piores do que o cenário pré-pandêmico. De acordo com a ONU, aproximadamente 733 milhões de pessoas sofreram com a fome em 2021, aproximadamente 152 milhões a mais do que em 2019.
Combate à fome: ações globais e locais
Acabar com a fome é um dos maiores desafios globais da atualidade, exigindo esforços de governos, organizações internacionais, da sociedade civil e do setor privado. Atualmente, há um compromisso mundial para acabar com a fome até 2030 por meio do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 2 da Agenda 2030, que é, inclusive, um dos ODS que o Pacto Contra a Fome atua diretamente.
Várias iniciativas internacionais visam erradicar a fome e alcançar a segurança alimentar para todos, muitas delas com coordenação da ONU, por meio da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO).
Nacionalmente, o governo brasileiro já implementou programas importantes nesse sentido, como o Bolsa Família e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), além de outras iniciativas de incentivo à agricultura familiar.