O acesso à alimentação saudável no Brasil não é apenas uma questão de oferta e demanda, mas um reflexo das desigualdades sociais, econômicas e raciais que atravessam o país.
Enquanto bairros centrais dispõem de opções de mercados e estabelecimentos com alimentos frescos e saudáveis, periferias convivem com a escassez de alimentos in natura e a abundância de produtos pouco nutritivos. Este cenário é o que chamamos de apartheid alimentar, uma forma de segregação que define o direito à comida com base em cor, classe e território.
Entenda o que é apartheid alimentar, quais as consequências dessa segregação e os caminhos para expandir as fronteiras da segurança alimentar.
O que é apartheid alimentar?
De origem africâner, a palavra apartheid significa “separação” e define um regime de segregação racial que vigorou na África do Sul entre 1948 e 1994. Esse sistema privilegiava as pessoas brancas e excluía legalmente a população negra, privando-a de direitos básicos como terra, moradia, educação e saúde e de circular livremente em diversos espaços.
O conceito de apartheid alimentar é baseado nessa estrutura, mas se refere à desigualdade no acesso a alimentos saudáveis resultante de fatores estruturais como raça, classe social e localização geográfica.
No campo da alimentação, ele revela que a fome e a desnutrição não são consequências do acaso, mas resultado de um legado de estruturas sociais, econômicas e políticas discriminatórias, que determina quem pode comer bem e quem fica à mercê da insegurança alimentar.
Em 1946, o médico Josué de Castro já denunciava a fome como um problema político – não fruto da escassez, mas das desigualdades sociais, da concentração de renda e da má distribuição dos recursos no território.
Décadas depois, o conceito de apartheid alimentar atualiza essa denúncia ao evidenciar que o acesso à comida de verdade segue sendo uma exclusão intencional, estrutural e racializada. Isto é, um direito é sistematicamente negado a determinadas parcelas da população – sobretudo pessoas negras, pobres e periféricas.
Na prática, essa desigualdade alimentar se manifesta pela ausência de supermercados, feiras livres e hortas comunitárias em bairros periféricos, enquanto a oferta de alimentos ultraprocessados se multiplica.
Fora das cidades, a fome atinge com mais força pequenos agricultores, indígenas, quilombolas e outros povos que lutam para manter suas formas tradicionais de cultivo, sendo ameaçados pela grilagem e pela ausência de apoio técnico e financeiro.
Racismo alimentar
Alinhado com a noção de apartheid alimentar, o termo racismo alimentar aponta como a desigualdade no acesso à alimentação está diretamente ligada à raça. No Brasil, os dados mostram que a fome tem cor. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), pessoas negras são 2,4 vezes mais afetadas pela fome do que as brancas.
A maior vulnerabilidade da população negra à insegurança alimentar não acontece por coincidência; é resultado de um sistema estruturado pela herança da escravidão, exclusão histórica de terras, marginalização urbana e negligência nas políticas públicas.
Nas cidades, esse racismo se expressa na concentração de desertos e pântanos alimentares em bairros periféricos e, majoritariamente, negros. Já no campo, agricultores e povos tradicionais, como indígenas e quilombolas, muitas vezes têm a produção de alimentos limitada pela falta de acesso a terra e água.
Durante a pandemia de Covid-19, o recorte racial da fome ficou ainda mais evidente. De acordo com o inquérito da Rede PENSSAN, mais de 53% dos domicílios chefiados por pessoas brancas vivem em segurança alimentar. Já entre os lares onde a pessoa responsável se autodeclara preta ou parda, esse número cai para 35%, revelando que a maioria convive com algum nível de insegurança alimentar.
Desertos e pântanos alimentares marcam a geografia da segregação
O apartheid alimentar se materializa nos chamados desertos e pântanos alimentares: mapas que revelam a desigualdade no acesso à comida saudável. Esses dois conceitos ajudam a entender como a oferta ou a ausência de alimentos está distribuída de forma desigual nos territórios, impactando na qualidade da alimentação das populações mais vulnerabilizadas.
Os desertos alimentares são áreas onde há pouca ou nenhuma oferta de alimentos frescos e saudáveis, como frutas, legumes e verduras. Sem feiras livres, sacolões ou mercados próximos, o acesso à alimentação adequada depende de longos deslocamentos, que refletem em preços elevados.
Já nos pântanos alimentares, além da escassez de pontos de comércio de alimentos saudáveis, há uma presença massiva de estabelecimentos que vendem majoritariamente produtos ultraprocessados: alimentos de baixo valor nutricional e alto teor de sódio, açúcar e gordura.
Tanto desertos quanto pântanos alimentares são comuns em regiões periféricas, de baixa renda e distantes de grandes centros urbanos. É o que mostrou um estudo do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens/USP), feito em Jundiaí (SP). Enquanto nas áreas centrais da cidade havia até seis vezes mais estabelecimentos de ultraprocessados que de alimentos saudáveis, nas periferias essa diferença chegava a 22 vezes.
Uma análise da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) revela outros recortes na desigualdade alimentar em Porto Alegre (RS): os desertos alimentares localizados na cidade estão em regiões com maior concentração de moradores pretos, pardos e indígenas, além de menores índices de escolaridade e renda.
No Nordeste, mais aspectos do apartheid alimentar se repetem. Uma pesquisa da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), realizada em Recife (PE), identificou que os setores classificados como desertos alimentares apresentam maiores índices de vulnerabilidade, com piores condições de renda, acesso limitado a serviços essenciais e maior concentração de analfabetos e pessoas negras, pardas e indígenas.
Nutricídio: a consequência invisível do apartheid alimentar
Pobres em alimentos saudáveis e ricas em açúcar, gordura, aditivos químicos e sódio, as dietas típicas do apartheid alimentar trazem graves consequências à saúde, como obesidade, desnutrição, hipertensão, diabetes, câncer e outras doenças crônicas.
Considerando os dados de que a desigualdade alimentar e suas consequências atingem com mais força a população negra e periférica, surge no debate a expressão nutricídio.
O termo foi criado nos anos 1990 pelo médico americano Llaila Afrika. Em seu livro “Nutricídio: a destruição nutricional da raça negra” (em tradução livre), o autor analisa o genocídio imposto à população negra ao afastá-la da produção e do consumo de alimentos saudáveis desde a colonização europeia no continente africano.
Além de problemas de saúde, o apartheid alimentar aprofunda a pobreza, a fome e a exclusão social, limitando o acesso à educação e ao trabalho digno e reforçando o racismo estrutural.
Políticas e iniciativas para expandir as fronteiras da segurança alimentar
O fenômeno do apartheid alimentar reconhece que a fome tem cor, tem classe e tem território – e que, na outra ponta dessa balança, está o privilégio de escolher alimentos saudáveis.
Combater esse problema exige uma transformação estrutural, capaz de enfrentar as raízes históricas das desigualdades e garantir o direito humano à alimentação adequada.
Entre as medidas para ampliar o acesso a alimentos saudáveis em regiões vulneráveis estão a criação de feiras livres, hortas comunitárias e mercados municipais que priorizem a produção local. Também é necessário investir na expansão e manutenção dos equipamentos públicos de segurança alimentar, como restaurantes populares, cozinhas comunitárias e bancos de alimentos.
O fortalecimento da agricultura familiar, por meio de políticas como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) é fundamental, pois contribui para conectar campo e cidade, promovendo soberania alimentar tanto para áreas urbanas vulneráveis quanto para pequenos produtores.
No quesito regulação, os especialistas apontam a necessidade de maior tributação e restrições publicitárias para produtos ultraprocessados, além de incentivos fiscais para que pequenos estabelecimentos priorizem alimentos in natura.
A identificação de áreas classificadas como desertos e pântanos alimentares é essencial para orientar políticas públicas e intervenções mais eficazes no combate ao problema. Nessas regiões, a educação alimentar também tem um papel fundamental, pois garante que as pessoas tenham mais consciência e liberdade para escolher alimentos saudáveis.