Enquanto o mundo ainda apresentava explicações superficiais para a fome, o visionário Josué de Castro viu além das aparências e desafiou as convenções de sua época. Muito mais do que médico e nutricionista, ele foi um pioneiro no estudo da fome, explorando suas causas sociais, políticas e econômicas.
Seu trabalho, inovador e à frente de seu tempo, não só impactou o Brasil, mas reverberou internacionalmente, sendo referência para especialistas, movimentos sociais e políticas públicas até os dias de hoje.
Conheça a trajetória de Josué de Castro, um dos maiores pensadores do Brasil, e a importância de seu trabalho vanguardista na luta contra a fome, cujas ideias ainda ressoam no debate sobre a segurança alimentar.
Quem foi Josué de Castro?
Reconhecido mundialmente por seu trabalho pioneiro no estudo da fome, Josué Apolônio de Castro foi um médico, geógrafo, escritor, professor, nutrólogo, sociólogo, ativista e político brasileiro.
Nascido em 1908 no Recife, capital de Pernambuco, Josué cresceu em meio a desigualdades sociais, o que cedo despertou seu interesse em entender a pobreza e a insegurança alimentar. Aos 20 anos, formou-se em Medicina na Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e se especializou em nutrição.
De volta a Recife, ele atuou como médico do trabalho em uma grande fábrica da cidade, onde conheceu mais de perto as consequências da miséria. Os chefes da empresa acusavam os funcionários de preguiça. Ao analisar as pessoas doentes, Josué afirmou aos patrões: “Sei o que meus clientes têm. Mas não posso curá-los porque sou médico e não diretor daqui. A doença desta gente é fome”.
Demitido da fábrica, o pernambucano compreendeu a fome como um problema social e passou a explorar outras áreas do conhecimento para analisá-la, como a geografia e a sociologia.
Em 1932, Josué desenvolveu um inquérito sobre a relação entre a alimentação dos trabalhadores e sua produtividade, apontando a gravidade dos efeitos da fome para além das explicações discriminatórias da época. O trabalho pioneiro na história da nutrição brasileira serviu de base para a implementação do salário mínimo pelo governo de Getúlio Vargas, em 1940.
Ainda no início da década de 1930, Josué começou sua carreira acadêmica na Faculdade de Medicina do Recife, atuando também na Universidade do Distrito Federal e na UFRJ. Ele conduziu diversas pesquisas e escreveu obras fundamentais para entender as causas da fome enquanto pesquisador nessas instituições.
A partir de 1940, o nutrólogo colaborou com órgãos governamentais e apoiou a execução de várias políticas públicas ligadas à alimentação, como a criação de restaurantes populares e pesquisas na área de tecnologia alimentar. Além disso, em 1946, Castro participou da fundação e foi o primeiro diretor do Instituto de Nutrição da Universidade do Brasil, atual Instituto de Nutrição Josué de Castro da UFRJ.
Sua influência ultrapassou as fronteiras nacionais: Josué de Castro foi eleito presidente do Conselho Executivo da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), em 1952. Por seu trabalho em prol da luta contra a fome, ele recebeu o Prêmio Internacional da Paz, em 1954.
O médico também se destacou na política, sendo eleito deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) em 1955, quando implantou a Campanha Nacional de Merenda Escolar e ajudou a fundar a Associação Mundial de Luta contra a Fome. Reeleito em 1958 como o deputado mais votado do Nordeste, apresentou projetos para regulamentar a profissão de nutricionista, o curso de Nutrição e propôs uma reforma agrária no país.
Em 1960, Josué se tornou presidente do Comitê Governamental da Campanha Mundial de Luta Contra a Fome, também da FAO. Pouco depois, em 1962, o intelectual nordestino foi designado embaixador-chefe do Brasil junto à Organização das Nações Unidas (ONU), em Genebra.
Com o golpe de Estado de 1964, Josué foi destituído do cargo, teve seus direitos políticos suspensos e foi exilado em Paris, na França. Mesmo longe do Brasil, ele continuou seu trabalho no combate à fome, participando de outras organizações internacionais. Castro também foi professor na Universidade de Paris VIII, onde atuou até sua morte.
Graças ao seu empenho, o brasileiro recebeu diversos reconhecimentos internacionais, incluindo o Prêmio Franklin D. Roosevelt, a condecoração de Oficial da Legião de Honra e seis indicações ao Prêmio Nobel da Paz, nos anos de 1953, 1963, 1964, 1965 e 1970.
Em seus últimos registros, Josué declarou que sentia muita falta do Brasil: “Não se morre apenas de enfarte ou de glomerulonefrite crônica, mas também de saudade”. Josué conseguiu autorização para voltar ao país em setembro de 1973, mas seu passaporte não chegou a tempo: o embaixador da luta contra a fome morreu de ataque cardíaco no dia 24 de setembro de 1973, em Paris.
Principais obras
Com cerca de 30 livros e centenas de artigos em português e outras línguas, as obras de Josué de Castro consolidaram sua posição como uma das vozes mais influentes no debate sobre segurança alimentar e justiça social.
Por meio de uma abordagem interdisciplinar, ele combinou dados científicos, observações empíricas e análises sociopolíticas, combinando conhecimentos da geografia, nutrição, economia e política.
Entre as principais obras de Josué de Castro, estão os livros Geografia da Fome (1946) e Geopolítica da Fome (1951), que o projetaram para o cenário internacional. Além disso, ele também explorou os impactos culturais e psicológicos da pobreza em textos como “Homens e caranguejos” (1967), seu único romance.
Geografia da fome
Embora não fosse geógrafo de formação, Josué se destacou como um dos grandes pensadores da Geografia. Ele recorreu ao método geográfico para analisar as causas estruturais da fome e suas desigualdades no Brasil.
Publicado em 1946, o livro Geografia da Fome é a principal obra do pensador e referência no estudo do fenômeno, já tendo sido traduzido em mais de 25 idiomas e reconhecido por diversos prêmios.
Na obra, o autor apresenta um mapeamento detalhado das áreas mais afetadas pela fome no país, dividindo o território brasileiro em cinco zonas geográficas de vulnerabilidade alimentar.
Sua análise desmistifica a ideia de que a fome é resultado da escassez de alimentos, demonstrando que sua verdadeira causa está na concentração de riquezas e na desigualdade social. Ele argumenta que a fome é um problema político e estrutural, ligado às condições históricas, econômicas e políticas que moldaram o Brasil, como o latifúndio e a exploração colonial.
Geopolítica da fome
Lançado em 1951, Geopolítica da Fome é uma extensão do primeiro livro, desta vez ampliando o fenômeno da fome a nível mundial. Na obra, Castro regionalizou sua análise, destacando as causas estruturais e contextuais da fome em cada continente.
O autor argumentou que a fome é uma ferramenta de dominação política e econômica, resultado de colonização, dependência estrutural e má distribuição de recursos, rejeitando explicações demográficas simplistas e defendendo reformas para justiça social e segurança alimentar global.
Traduzida para mais de 25 idiomas, Geopolítica da Fome se tornou referência em debates sobre segurança alimentar, relações internacionais e desenvolvimento sustentável, inspirando políticas e reflexões até os dias de hoje.
A importância do trabalho de Josué de Castro em mapear a fome
O trabalho de Josué de Castro transformou o entendimento da fome ao revelar suas raízes sociais, econômicas e políticas, indo além de explicações biológicas. Sua trajetória e suas publicações ajudaram a colocar a fome no centro dos debates globais.
O mapeamento da fome feito por ele em suas obras foi um marco para evidenciar as causas profundas da miséria e orientar políticas públicas mais eficazes. Defensor da reforma agrária, Josué também argumentava que redistribuir terras era crucial para democratizar a produção agrícola e reduzir as desigualdades no campo.Além disso, o ativista foi um dos primeiros a defender que o combate à fome exige mudanças estruturais profundas e justiça social, colocando a segurança alimentar como um direito humano fundamental.