Soberania é o poder de um povo determinar seu próprio destino. E, no que diz respeito à alimentação, isso significa muito mais do que simplesmente ter comida na mesa. A soberania alimentar é garantir que as comunidades possam decidir como os alimentos são produzidos, distribuídos e consumidos.
No Brasil, como as políticas públicas e programas existentes estão ajudando a avançar rumo a essa realidade? Vamos explorar o que é soberania alimentar e como ela se apresenta no cenário brasileiro.
O que é o conceito de soberania alimentar?
O conceito de soberania alimentar foi proposto pela organização internacional La Via Campesina em 1996, em um fórum paralelo da sociedade civil durante a Cúpula Mundial da Alimentação da Organização da ONU para Alimentação e Agricultura (FAO).
A definição de soberania alimentar se refere ao direito dos povos de definir suas próprias políticas e estratégias sustentáveis de produção, distribuição e consumo de alimentos, respeitando as culturas locais e o meio ambiente.
A ideia surgiu como resposta ao crescimento da agricultura industrial, que beneficia grandes corporações e o comércio global. Essa realidade prejudicou agricultores familiares, indígenas e outros povos tradicionais, que perderam espaço para manter suas formas de produção e sustento.
A soberania alimentar defende o fortalecimento da agricultura familiar, de modelos produtivos sustentáveis e da preservação do meio ambiente. Assim, promove a justiça social e ambiental, além de assegurar que o alimento não seja tratado como mercadoria, mas como um direito humano fundamental.
Pilares da soberania alimentar
Ao final do Fórum Mundial pela Soberania Alimentar, também chamado de Fórum de Nyéléni, realizado em 2007 no Mali, são estabelecidos os 6 pilares da soberania alimentar. Veja quais são eles:
- Foco nas pessoas: políticas devem colocar a alimentação das pessoas como prioridade, tratando a comida como um direito, e não apenas como mercadoria;
- Valorização dos produtores de alimentos: apoio aos modos de vida dos agricultores, respeitando seu trabalho e fomentando práticas sustentáveis;
- Mercados locais: redução da distância entre produtores e consumidores de alimentos, incentivando mercados locais;
- Controle local: autonomia das comunidades locais sobre a produção de alimentos e compartilhamento de territórios, sem privatização de recursos naturais;
- Conhecimentos e habilidades: valorização e transmissão do conhecimento tradicional sobre agricultura por meio da pesquisa;
- Produção agroecológica: promoção de práticas agrícolas sustentáveis e rejeição de métodos destrutivos, como a monocultura industrializada.
Qual é a diferença entre soberania alimentar e segurança alimentar?
É comum que os termos soberania alimentar e segurança alimentar sejam usados de forma complementar para falar sobre o direito à alimentação. Entretanto, esses conceitos apresentam diferenças de enfoques.
A segurança alimentar está relacionada ao acesso universal a alimentos suficientes, seguros e nutritivos para viver de forma saudável. O foco está no acesso físico e econômico aos alimentos, sem se preocupar com como ou onde são produzidos. Muitas vezes, isso inclui o comércio global, permitindo a importação de alimentos para suprir déficits alimentares.
Já a ideia de soberania alimentar foi criada, justamente, para se opor à noção de segurança alimentar. Ela vai além do acesso aos alimentos, defendendo o direito das comunidades de definir suas próprias políticas agrícolas, com foco no controle local, preservação cultural e proteção ambiental.
Esse conceito incentiva a autonomia na produção, valorizando sistemas agroecológicos, mercados locais e pequenos agricultores, e critica a dependência de grandes corporações e do comércio global, que priorizam interesses econômicos em detrimento das necessidades alimentares locais.
Importância da soberania alimentar
A importância da soberania alimentar não reside apenas no fato dela ser uma solução para erradicar a fome no mundo, garantindo a segurança alimentar duradoura para todos os povos.
Ela também é fundamental porque promove a produção e o consumo de alimentos de maneira justa, sustentável e culturalmente adequada, respeitando os direitos, a cultura, os hábitos e as necessidades das comunidades locais.
Esse princípio valoriza a autonomia das comunidades, especialmente de pequenos agricultores, povos indígenas e outros povos tradicionais, que muitas vezes são marginalizados no modelo de agricultura industrial.
Outro aspecto crucial é a promoção de mercados locais. Ao priorizar a produção e o consumo de alimentos localmente, reduz-se a necessidade de grandes corporações e do comércio global, diminuindo a dependência de importações e flutuações de preços do mercado externo.
Por conta disso, os sistemas alimentares baseados na soberania são mais resilientes em tempos de crises climáticas e econômicas. Sua produção diversificada diminui a vulnerabilidade e a dependência de longas cadeias de abastecimento a nível global.
Além disso, a soberania alimentar fortalece as economias locais, gerando empregos. O comércio regional também aproxima os produtores dos consumidores, assegurando que os alimentos sejam mais frescos, nutritivos e adequados às tradições alimentares de cada região.
A soberania alimentar ainda contribui para a preservação da biodiversidade e dos recursos naturais, uma vez que incentiva práticas agrícolas sustentáveis, que mitigam o impacto ambiental e protegem a saúde dos ecossistemas.
Soberania alimentar e meio ambiente
A soberania alimentar é uma aliada na luta contra o cenário de mudanças climáticas e degradação ambiental. Ela estimula a agroecologia, uma forma de produzir alimentos que utiliza práticas agrícolas sustentáveis, protegendo os recursos naturais, a biodiversidade e os ecossistemas locais.
O conceito vai na contramão do modelo de agricultura industrial, que explora o solo de forma intensiva e usa pesticidas e fertilizantes químicos em larga escala. Além disso, essa abordagem minimiza os impactos ambientais ligados ao transporte de alimentos de longas distâncias, já que prioriza mercados locais.
Soberania alimentar no Brasil
Na prática, um país tem soberania alimentar quando adota uma política que garante comida suficiente para toda sua população, estabilidade em momentos de crise, variedade de alimentos saudáveis, assim como acesso justo e igual a esses produtos, tanto em quantidade quanto em qualidade.
Essa ainda não é uma realidade do Brasil, que enfrenta desafios significativos em relação à insegurança alimentar. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a fome no Brasil atinge 8,7 milhões de pessoas. Ao quadro, soma-se a devastação da natureza agravada pela agricultura intensiva e a perda de territórios dos povos tradicionais.
Um marco na luta pela soberania alimentar no país foi a criação do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan) em 2006, com a função de coordenar políticas e ações em prol do direito à alimentação adequada e combater a fome no Brasil.
Entre as políticas relevantes para avançar nesse campo, estão ações como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que incentivam a compra de produtos da agricultura familiar e aumentam a inclusão de alimentos locais e saudáveis nas escolas.
Estratégias para a garantia da soberania alimentar no Brasil
No Brasil, várias políticas e programas já foram estabelecidos para promover a soberania alimentar, como o Sisan. No entanto, o principal desafio é garantir a implementação efetiva dessas leis.
Para assegurar a soberania alimentar, é essencial fortalecer a agricultura familiar, apoiando os pequenos produtores com mais acesso a crédito, assistência técnica e oportunidades de venda de seus produtos.
Outra estratégia é o desenvolvimento de mercados locais, por meio da criação de feiras e redes que aproximem os produtores dos consumidores. Mais uma prioridade deve ser o acesso à terra e aos recursos naturais para os agricultores e comunidades tradicionais por meio de políticas de regularização fundiária.
A promoção da agroecologia e capacitação dos agricultores em práticas sustentáveis também são estratégias importantes, assim como o incentivo à diversidade alimentar. Outro ponto é o combate ao desperdício de alimentos em todas as etapas da cadeia produtiva.Além do poder público, os movimentos sociais e organizações não governamentais, como o Pacto Contra a Fome, desempenham um papel crucial na promoção da soberania alimentar, cobrando a implementação de políticas eficazes e apoiando a agricultura local e o acesso a alimentos saudáveis.